Marina Manda Lembranças D e acordo com dados fornecido pela Storytel, empresa especializada no produto, as vendas de audiolivros cresceram 2...
Marina Manda Lembranças
Marina Manda Lembranças
Logo este ano, quando, impedidos pela pandemia de deixar as quatro paredes domésticas, poderíamos nos atracar com um bom livro.
“O audio, tem essa vantagem – diz o diretor da Storytel Brasil, André Palme – de ser multitarefa, de você poder consumir enquanto está fazendo outras coisas.”
Mas fazendo outras coisas, a atenção está forçosamente dividida, ora mais empenhada no áudio, ora mais naquilo que se está fazendo paralelamente. Cozinhar, por exemplo, atividade primeira graças à pandemia, exige atenção total. Sem ela o molho passa do ponto, a cebola queima, o peixe assa demais, o bolo sola e a refeição fica mais digna do lixo do que da mesa.
O mercado de ebook também cresceu, garantindo o universo editorial que precisou enfrentar as livrarias físicas fechadas. Mas uma coisa é o ebook, um livro em formato eletrônico que os mais velhos recusam – alegando que só convoca um sentido, a visão, enquanto o livro de papel envolve tato e olfato – mas que os jovens abraçam em plena intimidade. Outra coisa é o audiolivro. Sobretudo se for concebido como multitarefa.
Sabemos que a dispersão dificulta, ou até impede, o armazenamento na memória, a fixação. E sem fixação não dá nem para acompanhar uma boa história policial, pois é da estrutura de uma história policial ser cheia de detalhes, alguns deles plantados como índices, que ao leitor cabe farejar no afã de se adiantar ao final, e desvendar a trama antes que o autor revele a identidade do assassino.
Ouvir poesia enquanto se exercita o corpo no terraço, pode ser prazeroso, mas é impossível infiltrar-se atrás das palavras como a boa poesia exige, ao mesmo tempo em que se controla a respiração e se contam as flexões. Melhor ouvir uma canção com bela letra de Caetano, Gil, Chico ou Vinícius que, como na academia, imprime ritmo aos exercícios e amansa o esforço.
Audiolivro só serve para literatura se perder sua grande vantagem. E deixar de ser multitarefa. Porque leitura de literatura é feita de entrega, de transposição anímica.
Como ler “A montanha mágica” obra prima que Thomas Mann levou 12 anos escrevendo, sem transportar-se para um sanatório e envolver-se nas conversas filosóficas dos que ali estão internados com tuberculose, alguns entre a vida e a morte?
Como ler Clarice Lispector sem penetrar com ela no cerne do ser? E como penetrar no cerne, ao mesmo tempo em que se atendem mensagens de Zapp, ou se cuida das crianças?
Ler literatura implica em sair de si mesmo e transferir-se para o universo que está sendo narrado. Lendo Proust nos sentimos na Paris elegante do começo do século XX e ativamos nossa própria memória a partir da dele.
O mesmo pode ser feito através de uma voz, afinal os narradores surgiram séculos antes do livro. Mas há que absorver e deixar-se penetrar pela voz que narra, acompanhando-a através da história. Já ouvi Vittorio Gassman dizendo a “Divina Comedia”, e também Roberto Benigni, vozes superiores, de grandes intérpretes. O primeiro disse um “canto” num teatro, o seguinte em alguma parte externa de Roma. O segundo recitou ao ar livre, em duas noites de verão, rodeado pelas construções de uma das praças principais de Florença, com seu inconfundível acento toscano. E eu só queria ouvir e sorver.
Duvido que audiolivros tenham cenários de semelhante magnitude, nem artistas tão poderosos atrás das palavras. E só funcionarão se os ouvirmos rodeados de silêncio, sem fazer nada além de prestar toda a atenção que a narrativa exige.