Marina Manda Lembranças U m jovem de 20 anos olha o celular entre 150 a 190 vezes por dia. Crianças de 3 a 5 anos já começam bem, passando ...
Marina Manda Lembranças
Em Bacurau, cidade que nem está no mapa- embora muito bem localizada no atlas da nossa cinematografia – todos têm celular, metáfora entre a modernidade e a barbárie que segue inalterada desde os tempos do cangaço. Numa das cenas finais o usam para fotografar cabeças decepadas, iguais às que vi aos 19 anos no Museu Nina Rodrigues, em Salvador.
Um estadunidense médio lê, por dia, palavras suficientes para preencher um romance curto. Mas, alerta a neurocientista Maryanne Wolf, em seu livro “O cérebro no mundo digital”, é uma leitura fragmentada como cacos que não formam um mosaico e a atenção do leitor está pousada em mais coisas ao mesmo tempo. Com frequência – menos, eventualmente, em tempos de home office – há mais pessoas no mesmo ambiente, interagindo e falando. Ou seja, a leitura não se fixa, não é transferida para a memória.
Nem, penso eu, poderia. Um romance, mesmo curto, por dia, seria leitura excessiva. E armazenando cada palavra correríamos grave risco de provocar engarrafamentos da memória.
A leitura equivale a uma aula, bem puxada, de ginástica cerebral. A decodificação de letras, palavras e frases ativa uma área do cérebro, o reconhecimento das palavras ativa outra, a avaliação do conteúdo precisa de uma terceira, a memória motivada pelo que se leu faz recuso a uma quarta e os conteúdos sentimentais põem em funcionamento a quinta. É exatamente como muitos músculos sendo exigidos ao mesmo tempo. E quanto mais se lê, mais se exercita o cérebro.
Mas, segundo Maryanne Wolf, não só a leitura digital interfere no intrincado processo cerebral da leitura, como o modifica. “Se você não consegue entender, lembrar, expressar ideias por escrito, não tem paciência para ler livros longos e difíceis, é sinal de contaminação de leitura digital sobre a atividade cerebral.” O grave é ela ter constatado em si mesma esses sintomas.
Então, agora, além da contaminação do ar e da água, além da contaminação de oceanos e rios, teremos que nos cuidar da contaminação digital do cérebro.
E, a partir daqui, entramos na escorregadia área dos vícios. Os vícios já foram muito estudados. Sabemos, mesmo por alto, que liberam adrenalina conforme Silvana, a personagem viciada em jogo na novela “A força do querer”, não se cansa de repetir. Adrenalina é um hormônio neurotransmissor derramado no organismo para prepara-lo a enfrentamentos. E transmite um prazer intenso, diferente de todos os outros.
O jovem de 20 anos que olha o celular 190 vezes por dia, não o faz por avidez de notícias ou de conhecimentos. O faz porque não pode deixar de fazê-lo. É um vício, e uma reafirmação de êxito, tão comum a todos que sequer é encarado como vício. E, como tal, combatido.
Que geração estamos fabricando, não sabemos. Qual será o resultado, no cérebro dos pequenos postados durante 4 horas por dia diante de telas de variados tamanhos, ignoramos. Mas nadar contra a correnteza do próprio tempo é impossível.