Marina Manda Lembranças C omo é difícil jogar coisas fora! Mais fácil acumulá-las em gavetas, guardar em caixas ou caixinhas, meter em enve...
Marina Manda Lembranças
Marina Manda Lembranças
Como esquilos, somos acumuladores. E ao morrer, quanto trabalho damos a quem fica.
Coisas não são apenas coisas. Cada objeto de que não conseguimos nos desfazer está envolto em espessa rede da memória, não é objeto solitário, faz parte de um conjunto. Jogá-lo fora significa desfazer a harmonia do conjunto, tirar uma peça do puzzle, que ficaria para sempre incompleto.
Quantas vezes hesitamos por instantes, um olho já posto na cesta de lixo, um recibo ou anotação na mão. Depois abrimos caixa ou gaveta, mesmo sabendo que quando, e se, precisarmos daquele papel teremos esquecido onde o guardamos, e desistimos da cesta de lixo.
Eu, pelo menos, sou assim. E sei que tenho abundante companhia.
Recentemente, precisando arrumar um cômodo que havia virado depósito e quarto de costura, quanta coisa joguei fora. Não só tecidos e não só coisas minhas. A maior parte da estante estava ocupada por livros de coffe-table, tão lindos, mas que a gente só abre quando ganha. E caixas e caixas de Affonso, cheias de papéis que faz muito perderam validade.
Guardo num baú o albornos preto, bordado, que meu pai usava por cima do smocking quando vivíamos em Asmara, na África, cidade de noites frias, pois situada a mais de 2000 metros de altitude. Usei uma única vez para ir ao Municipal no dia errado, e acabei arrastando-o no ex-cinema Miramar para não perder completamente a noite. Nunca jogarei fora a única lembrança física que tenho da cidade em que nasci.
No mesmo baú guardo um vestido longo e branco que suponho já não me caiba. Usei duas vezes somente, uma para ir a uma festa elegantíssima, outra para posar para uma foto que conservo, com Léa Maria e Gilda Chataigner, as “moças do Jornal do Brasil” (a data não sei e não vou procurar a foto). Comprei um tecido adamascado fosco e pesado, de cortina, e mandei fazer (ainda existiam costureiras) um chemise de mangas compridas. Mas há um detalhe: havia acabado de receber, da minha tia avó Gabriella Besanzoni Lage, uma herança em joias deslumbrantes que ao contrário do vestido não guardei, e costurei na gola uma rivière de solitários à qual faltava o fecho. Na festa, brilhei para Millôr Fernandes, que eu namorava na época.
O vestido que dorme no baú, certamente amarelado pelo tempo, está envolto em múltipla rede de lembranças. Dos anos em que trabalhei no Jornal do Brasil, das minhas duas companheiras de redação, do breve momento em que fui rica sem ser, do meu namoro, e last but not least do meu engenho ao escolher, como Scarlett O’Hara, personagem central de “O vento levou”, um pano de cortina para fazer um traje elegante.
Na minha mesa de trabalho cochilam livros que me proponho a ler algum dia, a revista de literatura Rascunho da qual só li uma parte, uma conta da Light necessária para comprovar endereço, vários bloquinhos de anotações, um aviso de que a minha assinatura da revista francesa L’Obs acabou, e todo o material de pesquisa utilizado no meu livro mais recente, empilhada desde o início da pandemia, enquanto a editora espera momento mais favorável para lança-lo e eu espero a chegada das provas para fazer a última verificação.
Embora meus documentos principais estejam em perfeita ordem e catalogados em pastas, quanto trabalho darei a minha filha Alessandra quando me for.