Marina Manda Lembranças N ada mais chato do que cronista previsível! Não havia como prever crônica do mestre Rubem Braga, que tirava da man...
Marina Manda Lembranças
Eu ia falar de Ngzi Okonjo-Iweala, mulher “boa de briga” e de belo percurso no mundo das finanças, ao comando da OMC. E da jovem ativista indiana Disha Ravi, líder do braço indiano do movimento Fridays for Future criado por Greta Thunberg, presa em sua casa no sul da Índia e levada de avião para Nova Délhi para ser interrogada. Casaria as duas notícias com a renuncia de Yoshiro Mori, presidente do comitê Organizador dos Jogos Olímpicos de Tóquio, por comentários machistas feitos em uma reunião, quando disse que “as mulheres falam demais” e reiterados no dia seguinte quando perguntado se era isso mesmo que ele havia dito, “Eu não ouço muito as mulheres ultimamente, então eu não sei”.
Mas sendo eu a cronista, que previsível seria isso!
Então, em homenagem a Okonjo-Iweala, da Nigéria, conto coisas acontecidas com minha família quando vivíamos na África.
Fomos parar na África porque meu pai já havia estado duas vezes no Brasil e gostava de terras tropicais. Não gostava do clima, gostava da aventura de viver em outro país. Havia se voluntariado duas vezes na “guerras de conquista” como o regime chamava as guerras de colonização ou, melhor dito, as guerras de apropriação indébita. E havia-se encantado com a Abissínia. Quando ali nasci era assim que se chamava o antiquíssimo Império Etíope cujas raízes afundam até o século 10 aC. Agora está desmembrado em dois países, Eritréia e Etiópia.
Acabei de ver o filme “I due nemici” (os dois inimigos) mandado pelo meu sobrinho porque se canta exaustivamente “Faccetta nera” ( carinha preta), canção emblemática para os italianos na Abissínia e meu apelido de infância. É um filme de 61, com Alberto Sordi no papel de um comandante italiano, e David Niven no papel de um comandante inglês, enfrentando-se, cada qual com seus estereótipos, em plena guerra de conquista. Olhei avidamente buscando conhecer a paisagem – reconhecimento seria impossível porque saí da Eritreia por volta de um ano, ou um ano e meio. Só agora, via Google, soube que o filme foi rodado em Israel. Frustração do olhar. Só aproveitei os estereótipos dos dois excelentes interpretes.
Nunca consegui voltar a Asmara, cidade do meu nascimento. Estava programada para fazê-lo no começo de 2020, com Samir Abujamra que faria um filme. Fomos atropelados pela pandemia. E me parece assaz improvável a retomada do projeto.
Da África só trouxemos as histórias e pouquíssimas fotos. No mais, a casa para onde nos mudamos em Trípoli, na Líbia, e tudo o que continha, presentes de casamento, o retrato do avô emoldurado, móveis tapetes panelas e cortinas, tudo foi deixado por meu pai, frente à eminente chegada do exercito inglês. Não creio que tenha passado a chave na porta.
A história da caçada onde não se matou nenhum bicho porque minha mãe espantou as gazelas que vinham beber, a história do galgo italiano muito miúdo e extremamente magro que acabou devorado por um leão criado em jaula por um amigo da nossa família, Zemba, assim era o nome do cão, passou entre as barras da jaula para brincar com aquela criatura enjubada. E a história do macaco, interessado apenas em se apropriar do pão que eu mastigava ao ar livre, no berço ou no carrinho, e que foi morto por um tiro disparado por meu pai de uma janela, tentando me proteger.
As histórias são sempre as mesmas, não há como modificar memórias. O que muda é a maneira de contá-las. E só mudará enquanto eu estiver viva para contá-las. Os outros protagonistas há muito se foram, cada qual levando consigo seu lote.