Marina Manda Lembranças D iante de 1.840 mortes em 24 horas, sinto-me tentada a afirmar que a realidade existe, pelo menos a do coronavírus ...
Marina Manda Lembranças
Diante de 1.840 mortes em 24 horas, sinto-me tentada a afirmar que a realidade existe, pelo menos a do coronavírus e das cepas correlatas. Mas bem sei que não é essa a verdade. A realidade é sempre uma construção, ou individual ou de grupos. Construção que se desloca e, nesse deslocamento se modifica.
A realidade de uma relação dificilmente, tão dificilmente, é a mesma para os dois elementos do casal. Assim como não é a mesma para os amigos. Para isso servem os comentários - que me recuso a chamar mexericos-, para expor a realidade encarada de um ponto de vista diferente, e compará-la com a realidade alheia.
A realidade é a miragem pela qual orientamos nossas vidas. A solidez inexistente. A rocha-nuvem.
Todos os dias leio demoradamente, no jornal, realidades diferentes da minha, opiniões dos que sabem mais do que eu. Preciso delas, como vigas e tijolos, para construir minha própria realidade e dar-lhe um mínimo de firmeza. Sem essa leitura, que mambembe seria a minha visão de mundo, aquilo que, não sem inchar pomposamente o peito, chamamos realidade.
Olho a paisagem ao pôr do sol do alto do meu terraço, e penso estar vendo a natureza no seu aspecto real. Mas o que vejo é filtrado pelos meus sentimentos, pelos meus olhos, pelo meu cérebro, pela minha memória. Olho a Cabeça do Imperador, daqui de baixo, e ao mesmo tempo sobreponho a vista lá de cima, como a vi quando, adolescente, escalei a montanha com um grupo de amigos e, pernas pra baixo na beira do abismo, fui só visão e encantamento.
Olho o acender-se das luzes, e reparo que no Vidigal a maioria da iluminação é azul porque as lâmpadas azuis consomem menos energia, que a comunidade avança sobre a mata, e misturo o que vejo com o que vi, a festa do Hotel do Arvrão onde realizou-se a festa de carnaval que acabaria resultando em muita contaminação.
Até mesmo olhando a Lagoa tão linda, sei que a realidade oculta assoreamentos e esgotos despejados em natura.
Tudo é somatório de tudo. Menos para meu neto, Nuno, que acabou de fazer 9 meses, para quem tudo é -ainda- descoberta. Quando fizer dois anos, ou três, souber falar e se locomover sem hesitação, a realidade dele será outra.
Mesmo na pandemia, várias realidades se entrecruzam para reger nossos destinos cidadãos.
A realidade da família dos mortos, seja pela ação do vírus, seja pela falta de ação governamental, é só dilaceração, invocação antes de dormir, sofrimento sempre à beira do pranto, e saudade irreparável. A dos médicos e enfermeiros é a do front, em que uma batalha se perde e outra se ganha, mesmo tendo as armas precárias ou inadequadas, mesmo sem os trajes apropriados ou os medicamentos. Quando a batalha se perde, o leito higienizado é logo ocupado por outro paciente, que traz consigo sua própria realidade a ser respeitada por quem cuida. Quando a batalha se ganha, a alegria pela vitória dura pouco mas se acumula em orgulho no peito, pois outro doente logo chega.
A realidade para o Ministro que deveria ser da Saúde, general Pazuello, é feita de dados maquilados, planejamento confuso, a impossibilidade de garantir a quantidade de vacinas que prometeu e, sobretudo, o “há quem manda e quem obedece”.
A realidade de Jair Bolsonaro e da sua corte, vai de uma “gripezinha” ou “resfriadozinho” a “não sou coveiro”, “vamos todos morrer um dia”, à cura da hidroxicloroquina , à negação do uso da máscara e do distanciamento social.
A realidade dos Governadores, confrontados com o engessamento do governo federal, é da ação em busca de vacinas contra a covid-19. Não é sem tempo!
Ilustração: Javier Jaen