Marina Manda Lembranças E stou lendo, ou relendo, “Octaedro” de Julio Cortázar. Mais provavelmente lendo porque, embora seja uma edição do s...

Marina Manda Lembranças
Lembro o impacto que me provocou a leitura do primeiro livro de Cortázar. Hoje, lendo “Octaedro”, e sobretudo lendo-o em língua original, chego à conclusão que foi ele, e não Edouard Dujardin no século IX, o verdadeiro inventor do stream of consciousness, estilo que operou uma revolução na literatura.
Julio vai e volta no pensamento, insere coisas que não teriam espaço em escrita linear, memórias que se superpõem ao presente, nomes, encaixes de uma mente sem bussola, presente e passado entretecidos, um pé prá frente no discurso e outro prá trás. E seus diálogos são truncados, sugeridos, não tão bem fraseados e completos como na literatura tradicional, onde mais parecem falas teatrais.
Do mesmo modo, a trama vai surgindo aos poucos – Julio não tem pressa – como se saída de uma névoa, que o leitor mais intui do que deduz. E o final é sempre aberto, incompleto, vida que segue.
Não à toa Cortázar disse ter passado a infância envolto “em uma bruma de duendes, de elfos, com um sentido de espaço e tempo diferente dos demais”, foi menino doente, triste e ensimesmado. Não à toa traduziu o obra completa de Poe, seu irmão literário no mistério. Não a toa seu livro de cabeceira era “Opio” de Jean Cocteau, diário da desintoxicação do vício homônimo, feito de anotações entrecruzadas sobre artistas, pensadores, escritores. Cortázar disse que sua escrita foi modificada por essa leitura.
Ele tem os olhos mais afastados que já vi em um ser humano. E olhando sua fotos sempre penso que via uma parte da vida com o olho direito e outra parte com o esquerdo. E que sua literatura é o resultado dessa dupla visão.
Em algum momento e em algum lugar li que Julio sofria de acromegalia, enfermidade em que o organismo produz excesso de hormônio do crescimento na vida adulta. De fato, era altíssimo.
E, a partir disso, escrevi meu livro infantil “O homem que não parava de crescer” e o dediquei a ele. Pensei no que acontece quando alguém cresce e continua a crescer. Comecei pela cama onde a personagem acorda no meio da noite já com os pés de fora, depois as roupas que deixam de caber, os botões que se tornam minúsculos, a cabeça que bate no teto exigindo abrir um buraco, a necessidade desmesurada de comida. Terminei com a personagem saindo pelo telhado, pondo uma perna pra fora, depois a outra, e indo com extremo cuidado pelo caminho da vida. Resultou numa metáfora para o crescimento de qualquer criança.
Pensava que a acromegalia o havia matado, como já aconteceu com outras pessoas. Agora, por estar mergulhada em “Octaedro”, fui investigar. E soube que a versão mais corrente de sua morte é depressão pela morte da sua última mulher, Carol Dunlop, aliada a leucemia.
Mas em uma entrevista no dia em que a morte de Cortázar completava 30 anos, sua amiga, a jornalista uruguaia Cristina Peri Rossi, disse que o que matou seu amigo não foi nem câncer nem leucemia. Ele morreu de aids, então uma doença desconhecida, que contraiu através de uma transfusão para repor o sangue perdido em uma hemorragia gástrica. E ela sabia disso porque, em uma viagem ao Uruguai o levou a um medico que, depois de ver os exames, disse que não se tratava de câncer, mas de uma doença estranha que baixava as defesas imunológicas.
Resta saber por que Cristina demorou 30 anos para falar da morte de pessoa tão importante.