Marina Manda Lembranças D a minha avó paterna herdei a escoliose. Do meu avô paterno recebi os olhos verdes. A minha avó materna me legou ...
Marina Manda Lembranças
Temos um pé atado ao DNA e o outro pé atado à história. Disso, nenhum ser humano escapa. Somos múmias de bandagens ocultas, atados todos a múltiplas coisas.
Todos buscamos nos conhecer através de nossas origens, da nossa história, a história que nos gerou. Todos queremos voltar ao bairro, cidade ou país de onde viemos. Formamos com nossas origens um bloco indissolúvel, parte do nosso eu mais profundo. E a elas também estamos atados.
Nos debruçamos sobre álbuns antigos de fotografias, procurando identificar nos rostos dos antepassados características do nosso próprio rosto. E tiramos tantas fotos, agora que é possível e fácil, para deixar nossa marca, a marca sobre a qual algum descendente se debruçará em busca da sua identidade.
Penso nisso quando tantos se queixam por estarem limitados à própria casa. A vida, toda ela, é feita de limitações. Tomamos conhecimento delas já na primeira infância, quando educar é criar limites. Depois, com o passar dos anos, outros limites se impõem; no trabalho, nas relações de amizade ou afeto, no desejo, entre o que se tem e o que se quer, até mesmo na fantasia e na gula. Tornar-se adulto é estabelecer limites.
Limites externos ou, quantas vezes!, internos.
Fulana não para de se olhar em qualquer reflexo ou espelho, cicrano não se entrega nas relações, beltrana tem temperamento belicoso, fulano mascara sua insegurança através das conquistas amorosas, beltrano faz do sucesso um escudo atrás do qual se esconde. São fronteiras difíceis de ultrapassar, limitações que o temperamento impõe. Uma bandagem a mais, está visível.
Ninguém é tão livre quanto supõe ou se intitula. Ouso dizer que na vida real a liberdade não existe, é um conceito apenas, e por isso tentamos tanto alcançá-la.
Muitos andam se queixando da solidão. Solidão conheço muito – meu primeiro livro tem título “Eu Sozinha”- e a profissão do escritor exige solidão. Diz o neuropsiquiatra Boris Cyrulnik: "A solidão pode ser um bem. Ela nos cura do estresse social. Quando estamos fartos da velocidade da vida ativa, aprendemos, graças à solidão, a apreciar a lentidão, o silêncio, a calma. É uma delícia”. Mas a queixa de tantos não é de solidão, é de isolamento, da distância de outros seres humanos, sejam eles queridos ou desconhecidos. Acostumados a andar nas ruas cheias de gente, estranhamos sua falta.
Depois de mais de um ano encerrada em casa, voltei a caminhar. Gostei, ah quanto gostei!, de estar novamente na estrada, entre humanos. Mas, para meu espanto, descobri que perdi o passo antes compassado, perdi parte de direção e me desviava da linha reta antes impecável, perdi boa parte do fôlego travado pela máscara e pelos pulmões, perdi grande parte da resistência. Sobretudo perdi conhecimentos que tinha, antes arraigados de tal forma que nem os percebia.
Conhecimentos determinam grandemente nossos limites. Quanto mais conhecimentos, mais se expandem as fronteiras. Por isso estudamos – quando temos oportunidade para isso - por isso lemos – quando idem -. Para ampliar nosso espaço , e ter direito, mesmo se ilusório, a nos considerar livres.