Marina Manda Lembranças L eio que Guy Sorman em seu último livro acusou de pedofilia o filósofo francês Michel Foucault e reforçou a acusaç...
Marina Manda Lembranças
Marina Manda Lembranças
Mas a imunda acusação me lembrou do jantar que Affonso e eu oferecemos a Foucault.
Em maio de 73, ele havia vindo ao Rio a convite da PUC para fazer uma conferência, “A verdade e as formas jurídicas”. Naquele momento, Affonso dirigia o departamento de Letras. Já não sei se o convite partiu dele, ou se Foucault fez outra palestra para Letras. O que eu sei, de forma clara como o sol, que um dia Affonso anunciou: “Temos que oferecer um jantar para Foucault”.
A partir dessa resolução, estabeleceu-se a azáfama!
Minha parte consistia no menu e na elegância da noite. Havia lido aos 19 anos “A historia da loucura”, teria o que conversar com nosso convidado (guardo minha edição italiana autografada por ele).
Affonso se encarregaria dos convites.
Progressivamente foi me dizendo que havia um frisson na PUC, todo mundo querendo ser convidado para o jantar e vários estavam se autoconvidando.
Quando a noite do jantar chegou, o homenageado foi pontualíssimo porque Affonso havia ido busca-lo no hotel. A língua da noite seria francês. Começamos os drinques e aperitivos. Chegou um professor cujo nome foi-se no tempo. Chegou outro. Chegou Alexandre Eulálio, intelectual caleidoscópico interessado em arte, literatura, cinema e história.
E não podendo mais esperar porque o convidado principal devia estar morrendo de fome, servi o jantar. Que dado o número de convidados só poderia ser à americana.
A mesa parecia um banquete real da idade média. Pilhas de pratos, montes de talheres, guardanapos para multidões, e as travessas de comida, duas coxas de cordeiro assadas, acompanhamentos a perder de vista e um bosque de salada. Foucault deve ter pensado que eu era dona de casa exibida além da conta. Não podia saber que continuávamos esperando os convidados, contanto com o péssimo costume carioca da impontualidade.
Servidas as sobremesas, soubemos que ninguem mais chegaria. E nos aquietamos, entrando na situação.
Fim de noite, Foucault devolvido por Affonso ao hotel, avaliamos o jantar e concluímos que a ausência de convidados não fez a menor falta. O homenageado pareceu bem satisfeito de livrar-se de mais um jantar formal em que seria obrigado a demonstrar inteligência.
Os dois professores, não tão acostumados com a língua, no começo pouco falaram. Mas Alexandre Eulálio, que falava francês à perfeição, fez uma paródia da família imperial brasileira, cantou versos de músicas, tricotou arte com Foucault, e com nossa ajuda e a dos dois professores, o entreteve a noite inteira. O homenageado estava plenamente à vontade e a imagem que guardei dele não é alisando a cabeça raspada como fazia nas fotos e nas ocasiões acadêmicas, mas derreado no sofá, rindo.
No dia seguinte esperávamos uma enxurrada de telefonemas com pedidos de desculpas e motivos esfarrapados justificando ausências. Não houve tantos. Deduzimos que o entusiasmo inicial havia cedido lugar ao amarelamento pelo não domínio da língua da noite.
Só lamentei não ter feito um jantar sentado, tão mais confortável. E ter cozinhado comida para uma semana.