Marina Manda Lembranças V inha eu caminhando pela calçada em exercício matinal, quando um passarinho cruzou meu caminho. Parei para deixa-lo...
Marina Manda Lembranças
Marina Manda Lembranças
Alcancei o sinal, esperei porque estava fechado, andei mais um quarteirão e, pouco depois de dobrar a esquina me deparei com uma cena horrenda.
Sobre a calçada jazia um rato morto.
Vi na cabeça, onde havia sido atingido, o ponto de sangue. E havia um pequeno, mínimo, rastro de sangue antecedendo o cadáver. Pensei que o pobrezinho, golpeado, havia se arrastado antes de cair morto. E atribuí o assassinato a qualquer peão da obra que avançava ali perto. Sei que é legítimo matar ratos, transmissores de doenças. Lembrei da Peste, de Camus. Mas um nó subiu na minha garganta. Era mais uma criatura que dia e natureza punham à minha frente. Não linda. Mas morta por mão armada.
Frente ao rato, lembrei-me de um miniconto intitulado “Tão somente” que escrevi para o livro “Hora de alimentar serpentes”, e que aqui transcrevo:
Iam à festa , calçados de cetim e de camurça, pernas metidas nas meias finas. Riam breves no percurso, antevivendo a alegria que os aguardava.
O rato ia tão somente em busca de comida. Passou diante deles, hirsuto, escuro como os lugares de onde vinha, cano, porão, esgoto. E veloz, porque sempre acossado por medo alheio.
Nada fez que os ameaçasse. Ainda assim, sentiram-se contaminados, e mesmo depois dele ter desaparecido caminharam cuidadosos como se pisassem em lama. Só tendo chegado à festa voltaram a rir.
Esse pobre rato morto que, de pé, eu encarava, certamente ia somente em busca de comida, necessidade que empurra fora de suas tocas e casas animais e seres humanos.
Mas ratos, ratazanas e camundongos, nascem destinados à abominação, e parece que o sabem, como atesta a pressa com que se escondem ou com que atravessam espaços livres. Ninguém gosta deles. São caçados aonde quer que apareçam, espancados a pau ou lapidados. Assim também baratas, morcegos, aranhas. Só a personagem do livro “A paixão segundo GH”, de Clarice Lispector, encarou esmagar uma barata na porta do armário e comer a massa branca resultante.
Podemos falar em crueldade da natureza, que não se detêm nos sentimentos dos seres que cria, e só atenta para a sua utilidade.
Beija-flores devem saber da sua beleza, porque seu voo é pura exibição e dança. Joaninhas nada sabem da elegância da sua carapaça e transitam ignaras sobre folhas, desconhecendo a força do vermelho. Já leões, onças, panteras e linces têm plena consciência de seu poder e beleza.
Voltei para casa sopesando essas duas possibilidades – sem admirado por todos, ser por todos abominado – e prestei ainda mais atenção em todo ser vivo que cruzasse meu caminho. Inclusive seres humanos.