Marina Manda Lembranças N ão à toa, “Nomadland” foi o filme mais premiado do Oscar 2021. Recebeu três estatuetas douradas: Melhor Filme, Mel...
Marina Manda Lembranças
Marina Manda Lembranças
Somos todos nômades no planeta Terra. Mas só alguns têm consciência disso.
De um a outro país. Com passaporte ou sem ele, de bote, de avião, levados por coyote, ou andando a pé com filhos pela mão mesmo sabendo que serão meses de espera diante da fronteira.
De uma idade à outra. Sucessivamente. Mais sôfregos no começo, mais experientes e mais desiludidos chegando ao fim.
Do começo da vida até a morte que, inexorável, nos aguarda. Sem que saibamos atrás de qual esquina nos pulará encima.
De uma a outra realidade. Um dia a realidade nos parece estável e organizada. E basta a noite passar para acordarmos em realidade oposta, fomos despejados, estamos desempregados ou obrigados a trocar de profissão, fomos convidados a assumir um posto muito acima do que tínhamos, ou muito abaixo. E tudo muda!
Vivemos todos na estrada da vida. Indo de um ponto a outro ponto, parando por vezes no estacionamento.
Não necessitamos de casas sobre rodas como as personagens de “Nomadland”. Ao longo do caminho mudamos de casa várias vezes, como se rodas tivesse. E de bairro, de favela, de cidade.
Somos nômades do corpo. Que se transforma sem parar, por dentro e por fora. Abrigando germes, largando cabelos e farpas de pele, pelos de barba e pelos púbicos, emagrecendo e engordando. E, o pior para tantos que tentam reparar o inevitável, enrugando, murchando, encolhendo.
E a isso se soma o deslocamento interior.
Não só o corpo é nômade. Os sentimentos também. Amamos hoje uma pessoa sem a qual achamos não poder nem respirar, e amanhã nos livramos dela com alívio e tocamos nossa vida com um novo amor, sem o qual..... Quantas amizades estreitamos ao longo de nosso nomadismo, e quantas abandonamos no caminho!
Somos, sobretudo, nômades da memória. Toda lembrança é uma construção, feita de tijolos de realidade e argamassa de fantasia. E por isso toda lembrança muda com o tempo que, pouco a pouco vai dando menos importância aos tijolos e mais importância à argamassa.
E somos nômades no tempo. Eu, por exemplo, nasci em 1937, um tempo agora vetusto, passado mais que remoto. Atravessei a Segunda Guerra, quando ainda se falava da Primeira, vivi a Guerra Fria, a Guerra do Vietnã e a da Coréia, a das Malvinas, as guerras de independência africanas, como a do meu próprio país, a Eritréia. E quando entrei em jornalismo ainda não havia computador, nem internet, nem influenciadores. Estou vivendo uma pandemia catastrófica, tendo herdado a morte da minha avó materna em outra igualmente devastadora, a da Gripe Espanhola.
Enchemos a boca para falar em modernidade, mas a modernidade de hoje será a antiguidade de amanhã, pois a modernidade envelhece irremediavelmente a cada nova descoberta ou mudança de comportamento. O movimento “Me too” e o “Black lives matter” revolucionaram o mundo. Estabeleceram novo padrão de modernidade. São coisas assim que levam a humanidade para a frente, como se morássemos todos em uma casa móvel, sobre quatro rodas. A questão ambiental faz parte dessa mobilidade. É agora. Ou agora. Já estamos contabilizando o atraso. Não podemos correr o risco de deixar nosso planeta com os quatro pneus arriados.
Significaria ter que “nomadear” para Marte.