Marina Manda Lembranças E m algum momento da vida li, de Alejandra Pizarnick importante poeta argentina suicida aos 36 anos, a cena que emer...
Marina Manda Lembranças
Marina Manda Lembranças
Não foi só no quarto da menina. Foi na cama dela. Onde o futuro executado, baleado e invadindo a casa, havia se refugiado e escondido debaixo da coberta. Cama e coberta ficaram ensopadas de sangue.
Essa menina jamais conseguirá esquecer a cara da Morte com quem tomou chá. A xícara era grande demais e cheia demais para a menina, que a segurava com as duas mãos. Mas nada é demasiado grande para sua companheira de mesa, tudo se adapta a ela. Até mesmo a vida e sua duração.
Depois da mortandade, as crianças que viram as ruas onde moram e transitam cheias de poças de sangue, mais tarde lavadas a poder de baldes d’água, também tomaram chá com a Morte.
Vejo essa mesa de chá não com uma só criança, mas rodeada por muitas. Todas as crianças pobres e miseráveis deste Brasil, agora mais pobre e miserável, tomam chá com a Dama descarnada.
Algumas, numerosas demais para um país que se quer civilizado, são baleadas diante de suas casas ou mesmo dentro delas, ou abatidas quando brincavam na rua, único lugar para brincar já que em favelas não há praças e muito menos play-grounds. Todas elas já ouviram tiroteios e muitas se deitaram no chão de casa ou sala de aula para evitar balas perdidas.
A isto se chama ameaça. Ou na linguagem poética de Pizarnick, tomar chá com a morte. A certa altura da cena, a morte diz à menina para tomar um pouco de vinho, mas não há vinho na mesa, e a menina reclama com a morte por tê-lo oferecido. A outra desculpa-se: “Sou órfã. Ninguém cuidou de dar-me uma educação esmerada”.
As criança pobres brasileiras são órfãs do estado. Que não lhes dá educação esmerada. Pois educação esmerada não se adquire só na escola, supondo que haja escola disponível, e salas de aula viáveis, e professores(as) bem preparados (as). Educação inclui saneamento básico e água potável. Água que falta a 35 milhões de brasileiros. E esgoto que falta a 100 milhões. O que, multiplicado pela taxa de fertilidade, dá cerca de 173 milhões de crianças criadas à beira de valas a céu aberto, de esgoto lançado em rios ou riachos, poluindo lagoas, baias e praias. E contaminando as crianças que nesta água imunda tomam banho.
Na modernidade, sobretudo num mundo submetido à pandemia, educação esmerada inclui internet. À qual, conforme verificamos recentemente, muitas crianças e jovens não têm acesso.
Educação esmerada inclui, em primeiríssimo lugar, comida. Quatro em cada dez famílias brasileiras passam por privação alimentar. Isto equivale a mais de um terço das famílias do Brasil. E fome, como bem disse Bentinho, não pode esperar. Criança desnutrida toma chá com a morte, sem petit fours, só chá mesmo, e chá não enche barriga, não alimenta.
Criança desnutrida sofre retardo no desenvolvimento, que dificilmente será recuperado no futuro. Lembro de quando nos espantávamos com a fome endêmica da Etiópia. Agora a fome está entre nós e só poucos se espantam. Sobretudo não os responsáveis, que acabam de cortar verba da educação e saúde, deixando órfãos as crianças e os jovens pobres deste Brasil que, nesse passo, ficará cada dia mais pobre.