Marina Manda Lembranças C omprei duas laranjas Bahia importadas, sem sementes. Bastou chegar a meio caminho entre minha casa e o supermerc...
Marina Manda Lembranças
Marina Manda Lembranças
Na semana anterior havia comprado uvas sem sementes, mas eram para o meu netinho que vinha almoçar comigo, ainda pequeno demais para revolver grãos de uva na boca e saber o que não é para engolir.
Acho que frutas sem sementes foram criadas para atender humanos que têm preguiça de cuspir, ou acham deselegante o cospe-cospe. Mas é impossível fartar-se de jaboticabas sem cuspir os caroços, já que os frutos têm tão pouco conteúdo. Da mesma forma, ninguém pensou em criar frutas do conde livres de caroços.
Ver-me à memória um peixeiro italiano com quem, durante muitos anos, comprei peixe na feira. Quando algum freguês chegava pedindo um peixe que não tivesse espinhas, respondia: “frango não tem espinha!”. Para ele, italiano, acostumado com peixes pequenos, o que importava era o gosto, não as espinhas.
Fazem quase dois anos que, neste mesmo espaço, escrevi que via uma jovem mulher, grávida, caminhando pontualmente na laje do seu edifício ou, para ser mais precisa, no quase terraço no topo do seu edifício. Caminhava com determinação aparentemente férrea, dando voltas no pouco espaço disponível, como forma de se exercitar, quer para ter um bom parto, quer cuidando da saúde do filho que levava no ventre. Era uma fruta com semente.
Pois agora voltei a vê-la. Novamente embarrigada. E embora eu todo dia olhe procurando por ela, não está vindo diariamente como na gravidez anterior.
Deduzo que agora tem o filho pequeno a cuidar, não está mais em dedicação exclusiva à nova semente, tem de se dividir. E crianças pequenas, como o meu neto que recém aprendeu a andar, exigem atenção constante. A todo momento podem bater numa quina, puxar uma gaveta, cortar-se num copo que acabaram de derrubar, cair de cabeça e fazer um galo, ou cair sobre o queixo e abrir um corte.
A novamente grávida não anda tão compassada como andava antes. Hoje a flagrei debruçada sobre o parapeito, perdida-achada em seus pensamentos, olhando o vento que lhe revolvia os cabelos (e ao escrever a frase, me dei subitamente conta de que antes os prendia num rabo de cavalo bem comportado, agora os cortou e os deixa livres). Devia ser, para ela, o momento de descanso consentido, que se concedia por estar grávida e já pesada.
Gostaria de reconhece-la se a encontrasse na rua empurrando um carrinho e com o outro filho/a pela mão, já que nossos prédios dão para a mesma calçada. Mas nunca lhe vi o rosto. Meu apartamento sendo tão mais alto que o quase terraço onde ela anda, só lhe vejo o topo da cabeça e, por vezes, um vislumbre do rosto.
Não me sinto invasiva por olha-la com tanta intimidade enquanto caminha ignara da minha presença. Meu olhar é de puro afeto e reconhecimento. Eu também estive grávida duas vezes, e sei como ela se sente, conheço a vibração do seu corpo, a expetância. Sei que olhando o vento, ela tem consciência de que o tempo passou, e de que, apesar de ter expelido a primeira semente, cuidará dela para o resto da vida, e o mesmo fará pela segunda. Que em breve chega.