Marina Manda Lembranças M inha tradutora e grande amiga Adria Frizzi me mandou, comentando um texto que eu havia escrito, a expressão usada ...
Marina Manda Lembranças
Coincide com o poema do americano Roger Keyes sobre o pintor japonês Hokusai que acabei de traduzir para usar em uma conferência. Título do poema, “Hokusai diz”. “Hokusai diz olhe com cuidado./Ele diz preste atenção, repare./ Ele diz continue olhando, mantenha-se curioso./ Ele diz não há fim para o olhar (....)”.
Gosto sobretudo do conceito deste último verso “não há fim para o olhar”. Quando olho o oceano do alto do meu terraço, sei que a linha do horizonte não é impedimento para o olhar, posso ver o mar além dela, pois a imaginação é parte do olhar. E os edifícios altos não são impedimento, pois lembro perfeitamente quando me mudei para este apartamento e eles não existiam, e meu olhar podia correr livre até a ponta de rocha que adentrava pelo mar, e eu via o sol se pôr atrás daquela rocha.
Pena que tanta gente, como se cega, esqueça de ver, esqueça de prestar atenção ao que a rodeia.
Semana passada passei diante de um canteiro de prédio igual a qualquer outro canteiro de prédio. Este, porém, estava florido, e florido de íris. Flores de íris são preciosas como orquídeas. Parei para acaricia-las com os olhos. Três sépalas brancas por fora, três pétalas roxas rajadas de escuro por dentro, e os pistilos erguidos ao centro. Íris florescem na primavera ou no verão, mas estes floresceram quando o frio se faz mais intenso. Demorei ao lado do canteiro, e voltei para casa carregando a visão enternecedora, preenchida como se levasse uma braçada de íris junto ao peito.
Pessoas passavam ao lado do canteiro, pois estávamos perto de uma estação de metrô. Nenhuma delas sequer virou a cabeça para olhar. Algumas empunhavam o celular.
Três dias mais tarde, quando passei pelo mesmo canteiro, as flores haviam desaparecido. Expulsas pela chuva, pensei, e pelo frio.
Quem não parou para olhar, ou sequer voltou os olhos para os íris, perdeu um momento de beleza que logo acabou, absolutamente gratuito, oferecido pela mesma natureza que nos gerou. E momentos de beleza, sobretudo em tempos de pandemia, são tão raros!
Toda manhã caminho, maneira de me exercitar. E vou rastreando ao redor com atenção. Foi assim que vi o anúncio preso no tronco de uma árvore, bem à altura dos olhos dos passantes. Estava forrado de plástico, cuidado de quem o havia escrito, para que não se desfizesse na chuva.
O anúncio era encimado pela foto de um gato. Abaixo o nome dele, CARLOS, assim mesmo em letras maiúsculas. Abaixo, o texto dizia que Carlos havia desaparecido há menos de um mês, que era amoroso, jovem, malhado, e havia fugido por estranhar a casa nova.
Pensei que a mesma casa nova que havia dado tanto prazer a seus donos, era estranha para Carlos que não fora avisado da mudança. Pensei que os donos deviam ter conversado antes com ele, ou ter mantido as janelas fechadas até ele se acostumar ao novo ambiente. Pensei no sofrimento dos donos ou dono/a, pensando no Carlos assustado e com fome, tentando voltar para sua antiga casa, talvez em outro bairro, talvez distante. Eles deveriam ter ido para lá, perguntar ao porteiro – se porteiro havia – se tinha visto Carlos, ou pelo menos vislumbrado.
Pensei também que esta era a forma mais adequada de inaugurar a frase “Pentear o gato”, que eu acabava de incluir em meu repertório.