Marina Manda Lembranças E stou lendo “Vista Chinesa", de Tatiana Salem Levy. O romance, porque de romance se trata, narra um estupro ac...
Marina Manda Lembranças
Só uma mulher poderia contar um estupro em primeira pessoa, colocando-se no lugar da vítima. Sem se vitimizar.
O tema “mulheres escritoras” está sendo muito falado, devido à tsunami de livros escritos por mulheres que transborda das livrarias e das editoras. Quando o mundo imaginaria que uma jovem poeta (recuso a denominação “poetisa”, assim como recuso a denominação “maestrina”) negra, leria um poema, concebido para a ocasião, na posse de um presidente dos USA?
Longe está o século XIX quando Jane Austen teve que ocultar a própria identidade ao assinar seus romances com a fórmula “by a lady”. Ou quando as três irmãs Bronte, (Emily, Charlotte e Anne) diante da recusa dos editores, se viram tangidas a escolher pseudônimos andróginos. Lembro perfeitamente, por volta dos meus 15 anos, de ler em voz alta para minha melhor amiga, “Jane Eyre” romance inesquecível de Charlotte, eu sentada na rede e ela acocorada à minha frente, as duas embevecidas. E “O morro dos ventos uivantes” de Emily já rendeu mais de um filme, demonstrando seu sucesso extemporâneo.
Em live recente, me perguntaram sobre a nova onda de escritoras. Respondi que as mulheres estão escrevendo com a faca nos dentes, que romantismo não faz parte. As autoras estão escrevendo no fragor da batalha, em luta.
Assim é o livro da Tatiana Salem Levy. Chama pau de pau, e não se avexa ao escrever boceta. Dá nome ao que tem nome. Descreve um parto como ela própria o viveu ao dar à luz uma menina, razão de ser deste livro.
Tatiana não chegou sozinha a “Vista Chinesa”, a esta escrita com som reivindicatório. Foram necessários séculos de feminismo. Foi preciso que no século XVII Aphra Behn pagasse suas contas com a escrita, primeira escritora de língua inglesa a realizar esta façanha. E que Mary Wollstonecraft, precursora do feminismo, escrevesse em 1792 “Uma reivindicação pelos Direitos da Mulher”, abrindo caminho para que sua filha Mary Shelley criasse “Frankenstein”.
Foi necessário que Mary Ann Evans se autonomeasse George Eliot. E que Amantine Dupin vestisse trajes masculinos para poder, na persona de George Sand, conversar com os colegas de profissão.
O presente começou a ser escrito fazem muitos séculos, graças a numerosas mulheres. Das quais algumas deixaram seus nomes na história, enquanto a imensa maioria trabalhava nas coxias. Faltam ainda os últimos capítulos, que as jovens escritoras e as escritoras do futuro imediato estão tratando de escrever.
O estupro narrado em “Vista chinesa” de fato aconteceu, como explica Tatiana ao fim do livro em Nota da Autora. Com uma amiga-irmã dela, que depois de inúmeras entrevistas - mais que entrevistas, relatos - depois de ler o romance e fazer as correções que quisesse, insistiu para que seu nome fosse citado: "Não tenho vergonha do que aconteceu. Eu quero que você escreva que isso aconteceu de verdade --- e aconteceu comigo, Joana Jabace."
O primeiro agradecimento de Tatiana é para ela, Joana Jabace, que contou o que viveu para que outras mulheres não tenham o mesmo destino.
Ilustração: Emmanuel Polanco