Marina Manda Lembranças F ui ao supermercado fazer as compras da semana e olhando com outros olhos aquela abundância toda não a vi, como até...
Marina Manda Lembranças
Com certeza meu olhar fez o link com uma matéria que havia lido no jornal antes de sair. O título da matéria dizia em negrito: “Quase 100 novas favelas” e o subtítulo : “Expansão, em 20 anos, foi de 4,8 milhões de m2”. Isso em metros quadrados, mas há que considerar a verticalidade, já que as casas das favelas não se limitam a um único piso. Moro ao lado da Pavão Pavãozinho e a toda hora vejo mais uma laje sendo construída, mais um andar batendo asas.
No total, desde 1999, 97 novas favelas brotaram do chão. Como se a cada dois meses e meio mais uma aparecesse. E muitas já despontam sob o domínio das milícias ou do tráfico, quando não dos dois juntos.
Da janela do meu quarto acompanho o crescimento de três delas, há quase cinquenta anos. Uma desce como lava pela encosta, a outra não para de se avolumar, a terceira coroa a crista de um monte, continuação de outra que não me é dado ver.
Volto à abundância do supermercado. Quando eu era criança e ainda vivia na Itália consumiam-se os produtos da estação, cerejas em pleno verão e laranjas no inverno, que é quando davam no Sul do país e na Sicília. Lembro que minha mãe pedia para mergulharem suas laranjas em água quente, para evitar o tranco nos dentes provocado pelos gomos gelados. Havia até um termo específico para indicar os primeiros produtos a chegar: “primizie”. As “primizie” custavam sempre mais caras que a plena colheita. E que delícia era esperar por cada safra! Encerrada a safra, fim do produto até o ano seguinte. Mas meu tio curtia cerejas no álcool para tê-las ao longo do ano.
Agora o supermercado oferece produtos do mundo inteiro, desde chocolates suíços até nêsperas importadas não se sabe de onde. Produtos a que a maioria dos brasileiros não tem acesso.
Volto às favelas. Quando cheguei ao Rio, em 48, as favelas eram de barracos de tábuas, e era importante feito eleitoreiro um político instalar uma bica ao pé do morro. Daí a canção, “Lata d’água na cabeça/ lá vai Maria!/ sobe o morro e não se cansa/ lá vai Maria”. Justo ao contrário, Maria se cansava muito carregando na cabeça lata de banha cheia d’água, morro acima, uma e duas vezes ou mais.
Evoluímos. Cimento e tijolos substituíram as tábuas que, como foi alegado, provocaram o incêndio que destruiu a favela da Praia do Pinto, à beira da Lagoa. Mas o esgoto ainda vai para fossas ou escorre a céu aberto, o lixo se acumula nas encostas não por sujeira dos habitantes mas por falta de coleta, não há praças para as crianças brincarem, muitas não tem sequer escola.
Evoluímos mais no social. Hoje há numerosas bibliotecas comunitárias nas favelas e projetos sociais criados pelos próprios moradores, como as importantes rádios que divulgam informações do interesse dos moradores e promovem o entrosamento e a cidadania.
Mas ainda falta muito, como comprova a outra definição de favelas, “aglomerados subnormais”. O que nos leva à ilação de que, quem nelas vive seja indivíduo subnormal. Coisa que não podemos, de forma mais que absoluta, aceitar.
Foi por isso que achei a abundância do supermercado indecente. O oferecimento de tamanha abundância faz com que um terço dos alimentos produzidos no mundo, não seja consumido e acabe no lixo.
País que tem tantos aglomerados subnormais não deveria posicionar-se como civilizado. Mas foi o que fez Bolsonaro, entre outras mentiras, no seu discurso de terça-feira, na Assembleia-Geral da ONU.