Marina Manda Lembranças F ui caminhar. E na calçada me deparei com um estranho indivíduo. Carregava um saco plástico enorme que, pelo perfil...
Marina Manda Lembranças
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Mal acabei de pensar, o homem se acocorou na calçada. Extraiu de alguma parte uma pedra branca parecendo ser cal prensada, e com ela começou a desenhar no cimento.
Parei para ver, atraída pelo ritual que se esboçava.
O homem desenhou dois círculos um diante do outro, quase encostados, e dentro deles desenhou duas setas convergentes.
Levantou-se, olhou sua obra com satisfação, andou cinco ou seis passos e, novamente, se acocorou. Continuava com a pedra de cal na mão.
Mas o desenho que fez foi diferente. Riscou dois traços, colocados na mesma distância dos dois círculos, e atrás deles desenhou duas setas que apontavam uma para a outra.
Como da vez anterior, levantou-se e demorou-se um tanto olhando seu desenho. Pareceu satisfeito. E logo, deu cinco ou seis passos e voltou a se acocorar. Desta vez não vi o desenho. O homem havia ficado muito distante para minha visão cansada, e temi que se sentisse invadido caso me aproximasse.
Segui adiante refletindo sobre o que havia presenciado. A primeira coisa que me veio à cabeça foi a Serra da Capivara, que visitei com Affonso numa ida a Teresina para algum congresso ou palestra. Trouxe de volta a louça que a arqueóloga franco – brasileira Niéde Guidon, há muitos anos responsável pelo sítio arqueológico, ensinou os locais a fazerem para terem uma fonte de subsistência. Louça com impressos os mesmos desenhos estampados na rocha, que se acredita serem vestígios de uma cultura paleoamericana. Pois, como um ser primitivo, o homem havia estampado seus pensamentos e sua visão interior na mais moderna das rochas: o cimento.
Havia reparado que o homem estava muito sujo e desgrenhado, calçava havaianas de sola já bem fininha e roupas indefinidas. Provavelmente era mais um morador de rua.
E como morador de rua, usava a mesma calçada em que dormia para se expressar. Usava a calçada, único bem que lhe pertencia, como se fosse papel para desenhar ou escrever. Porque não há duvida de que, ao desenhar, aquele homem estava escrevendo.
Estava escrevendo a sua dificuldade para se comunicar. Preso dentro de um círculo, pouco adiantava que as setas apontassem em direção uma da outra. Ele não conseguia obedecer à ordem das setas, pois continuava contido pela linha que delimitava o círculo.
Coisa idêntica dizia o segundo desenho, agora com um traço, uma parede, um muro, impedindo-o de obedecer ao comando das setas.
O terceiro desenho não vi, mas me parece altamente provável que repetisse a mesma narrativa.
Pode até ser que o homem, através de seus desenhos estivesse desenvolvendo uma teoria filosófica sobre a incomunicabilidade dos seres humanos. Que, se por um lado não conseguem viver sozinhos (significado das setas instando à comunicação), por outro lado não conseguem se entender (significado dos círculos e dos traços impeditivos).
Avançando nessa teoria chegaríamos à conclusão de que tudo o que é coletivo resvala no pessoal. Assim como os desenhos do homem, tão íntimos e pessoais, destinavam-se a quem quer que passasse naquela exata calçada de Ipanema.