Marina Manda Lembranças A cabei de ler a bela biografia de Hannah Arendt escrita pela sueca Ann Heberlein, que começa com uma citação da p...
Marina Manda Lembranças
Heberlein faz um admirável trabalho de costura, cruzando dados biográficos, depoimentos de terceiros, citações de autores importantes, textos extraídos dos livros de Arendt, correspondência entre ela e seus amigos, seu diário intelectual ou Denktagebuch, e a famosa entrevista que concedeu a Günter Gaus em outubro de 1964 em que fala de fatos da sua vida além de explicitar parte de seus pensamentos.
O título aponta para os três pilares de sustentação do livro, “Arendt Entre o amor e o mal: uma biografia”.
Não à toa Arendt cunhou a expressão “banalidade do mal”. Detida na Alemanha por trabalhar para a Federação Sionista, Hannah sabe que terá que emigrar, e ao cruzar a fronteira da Thcecoslóvaquia dá início a um ciclo de dezoito anos como apátrida, despida de direitos civis.
Nesses dezoito anos cabem os sete anos de exílio em Paris, o segundo casamento com Heinrich Blücher com quem ficaria até a morte dele, a internação forçada em Gurs no sopé dos Pireneus, a abertura dos portões de Gurs e a consequente caminhada a pé, a parada em Lourdes na casa de Walter Benjamin, a retomada da caminhada até Montauban no Sul da França onde se hospeda na casa de uma amiga, e o encontro inesperado com Heinrich – que como Hannah havia sido internado - numa rua de Montauban, o estabelecimento do casal num pequeno apartamento onde recriam o círculo de amigos, a percepção renovada de que mais uma vez é hora de fugir, o visto americano concedido pelo Comitê de Resgate de Emergência estabelecido em Marselha, a viagem de trem até a fronteira com a Espanha, a ida até Lisboa e, finalmente, o embarque rumo aos Estados Unidos e a chegada em Nova York.
Os dezoito anos abarcam ainda os anos passados em Nova York. Até 51, quando Arendt obteve a cidadania americana que lhe permitiu trabalhar em universidades, apesar dela continuar a se considerar apátrida até o fim da vida.
Hannah teve dois grandes amores. O primeiro foi o filósofo Martin Heidegger, bem mais velho que ela, e seu professor. Muitos anos mais tarde ela escreveria, “A filosofia foi meu primeiro amor” e este amor incluiria Martin, considerado um dos filósofos mais importantes do século XX. O segundo foi Heinrich, um amor que incluía cumplicidade intelectual, apoio recíproco em qualquer circunstância, e altas doses de companheirismo. O primeiro marido de Hannah, Günther Stern, não se inclui entre seus amores. Quando ela se casou ainda estava apaixonada por Heidegger e continuava a manter contato com ele.
Surpresa mais que agradável foi chegando ao fim do livro, encontrar um posfácio da minha amiga e brilhante historiadora Heloisa Starling, que aproxima o leitor do pensamento de Arendt ao traze-lo para a atualidade. Fala de governantes eleitos pelo voto mas com vocação para tiranos e, entre eles, nomeia Jair Bolsonaro.
Cita Arendt, “A originalidade do totalitarismo é horrível, não porque com ele tenha surgido no mundo uma nova “ideia”, mas porque as ações que o caracterizam representam uma ruptura com todas as nossas tradições; essas ações fizeram manifestamente explodir as nossas categorias de pensamento político e os nosso critérios de juízo moral”.
E ao pensamento de Arendt acrescenta:
“Na prática, ela estava convencida de que não podemos esperar compreender o totalitarismo adequadamente, antes de derrota-lo em definitivo – ele é o mal sem precedentes”.