Marina Manda Lembranças E stou lendo pela segunda vez “O Lustre”, em edição recente gentilmente enviada pela Editora Nova Fronteira, como pa...
Marina Manda Lembranças
Marina Manda Lembranças
Cheguei até a página 79 e estou achando a leitura muito trabalhosa. Em parte porque aprendi a ler Clarice, coisa que ainda não sabia quando li o romance pela primeira vez. Para ler esta autora extraordinária há que sopesar lentamente cada frase, em busca da pepita que se esconde no palheiro. Só às vezes se encontra a pepita que brilha reluzente. Na maioria das vezes é preciso tornar a ler a frase para entender o que Clarice quis dizer. E por vezes, não se consegue.
Em carta à irmã Elisa Lispector, citada no prefácio de Beatriz Damasceno, Clarice afirma que Virgínia, personagem central do romance, “era tola e mais do que simples – simplória”. Mas pessoas simplórias não se interrogam sobre seus próprios sentimentos, não tentam se entender. Os pensamentos de pessoas simplórias são fluidos, a respeito de fatos ocorridos, de receitas, de músicas ouvidas no rádio – quando ainda se escutava rádio – de mezinhas, de roupas a serem lavadas. Não são tão complicados quanto os de Virgínia.
Quem buscava a essência de si mesma era Clarice, consciente de que se a alcançasse estaria pondo a mão no núcleo, ou no caroço, ou na semente da alma humana, o que equivalia a entender a vida.
Vale dizer que Virgínia, quando vivia em Granja Quieta próxima de Brejo Alto, contava com a companhia do irmão Daniel, mais casmurro do que ela, que em parte a amava em parte a desprezava. Virgínia idolatrava Daniel, pela sua inteligência e pela sua masculinidade. A irmã Esmeralda guardava um segredo e nunca interagia com os dois.
Na página 79, até aonde cheguei, a vida de Virgínia muda abruptamente, de um capítulo a outro. Ela já está morando sozinha na cidade e se relacionando com Vicente.
A expectativa de Clarice não se realizou. “O Lustre” foi recebido friamente pela crítica – quando ainda havia crítica na imprensa.
Em carta ao seu fraterno amigo Fernando Sabino – no livro “Todas as cartas” da editora Rocco – datada em junho de 1946, mesmo ano da publicação do romance, Clarice se refere à nota de Alvaro Lins: “dizendo que meus dois romances (Álvaro Lins comparava “O lustre” com “Perto do coração selvagem”) são mutilados e incompletos, que Virgínia parece com Joana, que os personagens não têm realidade (...) que eu brilho sempre, brilho até demais, excessiva exuberância...(...) Chorei de desânimo e cansaço. Só quem diz a verdade é quem não gosta da gente ou é indiferente. Tudo o que ele diz é verdade. Não se pode fazer arte só porque se tem um temperamento infeliz e doidinho. Um desânimo profundo. Pensei que não deixava de escrever só porque trabalhar é a minha verdadeira moralidade.”
Em outra carta à Fernando escreve: “Aliás o Lauro (Escorel) numa carta que recebi dele, fala em relação ao Lustre em ‘escritor a ficar pedalando indefinidamente no vácuo' que está bem dito, em relação a quem é (...) o problema para quem escreve é antes de tudo um problema literário – mas pergunto-lhe agora: é ainda um problema literário a falta de pés no chão ou é anterior a ele?”
Ainda bem que a falta de pés no chão não impediu Clarice de continuar escrevendo. Ao contrário, a impulsionou.