Marina Manda Lembranças A cabei de ler “A força de Bedirya, a vida de meninas na Eritréia”, livro que ganhei em 2007 quando fiz um trabalho...
Marina Manda Lembranças
Marina Manda Lembranças
Eu também fui, e continuo sendo, uma menina da Eritréia.
Entretanto, não me tocou destino tão duro quanto o de Bedirya.
O autor Gérard Dhotel, foi como jornalista contratado pela Unicef para fazer uma reportagem sobre uma aldeia onde quase não há homens, os homens jovens e adultos foram convocados para a guerra, uma entre tantas, e nunca mais voltaram.
Para essa aldeia, o autor viaja com duas mulheres. Marion, que trabalha para um canal de televisão e está incumbida de filmar a aldeia, e Caroline, jornalista de uma revista feminina que deverá fazer uma matéria sobre excisão.
A aldeia fica, em termos geográficos, muito distante de Asmara a capital. E, ao contrário da aldeia onde Bediyra vive castigada pela seca e por um calor quase insuportável, Asmara está situada num altiplano a uma altitude de 2.325 metros, o que resulta numa eterna primavera e num brotar de flores.
O autor descreve deste modo a cidade onde nasci e onde nunca consegui voltar: “uma cidade mediterrânea, uma cidade estranha, bastante bonita (...) Vêem-se casas floridas, com jardins, palmeiras, buganvílias. E piscinas. Sim, piscinas. Asmara é um cartão postal envelhecido pelo tempo, com palácios italianos, ocres e vermelhos. Pelo menos no centro da cidade. Porque, em volta, há favelas que a cercam. E crianças que mendigam.”
Asmara tornou-se capital em 1897, cidade fundada pelos colonizadores italianos. Antes a capital era Massawa, cujo clima derretia o tutano dos ossos, portanto semelhante à temperatura da aldeia de Bedirya, mas livre da seca que fazem anos a castigam. Massawa é o principal porto da Eritréia, e meus pais desciam de carro por uma estrada cheia de curvas, comigo e meu irmão Arduino a bordo, para a família tomar banhos de mar.
Gérard Dhotel dividiu o livro em duas vozes, ou melhor, três vozes. Uma, a voz interior do autor que comenta o que o olhar percebe da realidade e o que está acontecendo ao redor. Outra, a voz do profissional entrevistando Bedirya, adolescente escolhida não por acaso mas por um sentimento misterioso que lhe disse que devia ser ela. E a terceira voz é a de Bedirya, ao mesmo tempo uma voz interior e a voz que responde às perguntas que o jornalista lhe faz.
Fique claro que a voz interior de Bedirya é uma ficção literária. Há mais vozes que se alternam, as das duas tradutoras profissionais mandadas pela Unicef, a de uma menina que ajuda a avó numa bodega, a de Marion à procura de imagens e que possam descrever a Eritréia para telespectadores franceses, e a de Caroline preocupada porque não está conseguindo testemunhos para sua matéria sobre excisão – embora na Eritréia 89% das mulheres sofram essa operação genital.
O problema de Bedirya é que não está mais conseguindo ir à escola, porque tem que ajudar a mãe nas tarefas domésticas, cuidar dos irmãos e tratar das três vacas, e ainda tem que buscar água, com a ajuda de um burro que carrega as latas e da sua irmã menor. E o único olho d’água fica muito longe da cabana onde Bedirya mora com a mãe.
Mas o jornalista consegue resolver o problema de Bedirya. O livro acaba com uma carta de Bedirya que conta que há três semanas começou a estudar. E está muito feliz.