Marina Manda Lembranças V olto aos recortes de jornal que estou tentando jogar fora, e conto uma história inacreditável. O mais conhecido mo...
Marina Manda Lembranças
O mais conhecido morador de rua da Roma histórica tinha o apelido de Garibaldi, devido a seus cabelos compridos e à sua longa barba. Mas não morava na rua, se abrigava com seu cão debaixo do pórtico do Palazzo Massimo, onde morava desde sempre a família dos príncipes Massimo.
Não era pouca coisa, Palazzo Massimo é uma obra-prima da renascença, com a fachada arredondada e o pórtico ladeado por seis colunas.
Mas há mais nessa história. Garibaldi não se abrigava sozinho com seu cachorro, um casal morava com ele debaixo do pórtico.
Era composto por um jovem príncipe Odescalchi e uma, igualmente jovem, condessa.
Todo dia o mordomo da família Odescalchi levava comida suficiente para os três. Ouvi dizer ou li em alguma parte, que nos primeiros dias o príncipe aceitou a comida oferecida em prato de prata e depois decidiu entrega-la à fome do cão. Não sei se passou a comer a ração.
Todas as noites refaziam a cama, um colchão pousado no chão mas equipado com lençóis e cobertor. E se deitavam os quatro juntos, cachorro incluído.
Não tinham banheiro nem privada e não tomavam banho
Várias vezes, indo e vindo para a casa da minha avó, passei diante daquele pórtico e reparei naquilo que me parecia ser uma família de sem teto.
Ninguém pedia esmola. O príncipe porque não precisava, a condessa porque era sustentada por ele. Quando Garibaldi ainda se abrigava sozinho debaixo do pórtico os comerciantes do bairro haviam estabelecido uma rede para alimentá-lo, o açougueiro dava um bife, o padeiro um ou dois pães, o fruteiro uma fruta que variava ao sabor das estações. E assim Garibaldi se sustentava.
O Palazzo Massimo era um dos poucos a conservar o pórtico graças a uma concessão especial do papado que no ano 1400 havia mandado destruir todos os pórticos da cidade.
Apesar da família Massimo desejar despejar o casal, estavam impedidos de faze-lo, por conta da simpatia de Garibaldi, seu protegido, que educadamente cumprimentava todos os funcionários e os membros da família.
Só após a morte dele os Massimo conseguiram se livrar do inusitado casal, que entrementes havia tido um filho. E cercaram o pórtico, antes aberto a quem quisesse se hospedar, com uma grade.
O casal se transferiu perto dali, ao lado de uma igreja, onde bloquearam a porta secundária com uma espécie de tenda. Não fui informada se o mordomo continuava levando a comida e se levava também a mamadeira para o bebê.
Mais uma expulsão, o lugar foi desinfetado e o casal foi se abrigar ao lado de Palazzo Farnese, um dos palácios mais importantes do século XVI que, já naquele tempo, abrigava a embaixada da França. Amarraram a mesma tenda imunda nas grades de uma janela do térreo. No interregno entre uma expulsão e outra a condessa havia dado a luz mais um bebê, desta vez uma menina.
A partir daí não sei o que aconteceu com o casal principesco. Sei que o cachorro já não existia quando a dupla foi expulsa do pórtico de Palazzo Massimo. Provavelmente morreu de abandono ao ver seu dono, Garibaldi, exalar o último suspiro.
Pode ser que eu tenha inventado este episódio, ou pode ser que tenha lido em alguma parte: ao sair de casa, o jovem príncipe Odescalchi se livrou da corrente de ouro que há anos usava ao redor do pescoço, e o enrolou no pescoço de um cachorro, como uma simbólica coleira. Depois atravessou a soleira da casa paterna abandonando a família e o cão, para nunca mais voltar.