Marina Manda Lembranças C upins esfaimados comeram parte da minha estante, aliás, da estante do Affonso. E os livros ficaram espalhados pelo...
Marina Manda Lembranças
Marina Manda Lembranças
Fiquei mergulhada nesses livros que traziam lembranças enternecedoras.
O primeiro que desencavei era uma edição francesa de Júlio Verne , “Da terra à Lua”. Um dos únicos que não li da coleção de capa dura, forrada de vermelho escuro, que nosso pai deu de presente a meu irmão quando, em 1948, viemos para o Brasil. Até hoje não me refiz da indignação. Foi uma atitude machista, pois eu partilhava todos os livros com Arduino. Aos dois deu de presente o Tesouro da Juventude, que aproveitamos muito, e a História do Brasil, em cinco volumes, de Rocha Pombo. Apesar de não ter lido nem um dos cinco tomos, o nome do autor ficou encravado na minha memória.
O segundo livro com que me deparei era do poeta Lindolf Bell, que foi nosso amigo durante muito tempo. Morreu cedo, aos 60 anos, de um ataque cardíaco. Era um homem lindo e alto, e quando declamava seus poemas levava o público ao delírio. Teve notoriedade durante um tempo. Fundou com a mulher uma galeria de arte, em Timbó, mesma cidade em que havia nascido, nos convidou para conhece-la, nos deu de presente pedras pintadas como bichinhos. Quando morreu, estava organizando a Casa do Poeta em sua própria casa.
O terceiro livro que tirei da pilha era “Canto e Palavra” do meu marido, Affonso Romano de Sant’Anna. Faço questão de escrever seu nome completo porque é um poeta relevante na literatura brasileira.
Lembro quando nos conhecemos no departamento de pesquisa do Jornal do Brasil. Não existia Google e o departamento era apenas uma série de pastas, organizadas em ordem alfabética, cheias de recortes de imprensa. Lembro, sobretudo, quando ele me entregou o livro. Estava de partida para um bolsa de estudos para os USA. E demoraria seis meses para regressar. Li o livro de poemas – o primeiro da vida dele, depois muitos se seguiriam – metida numa banheira de água quente.
Achava que entendia muito de poesia, treinada por meu pai que me dava de presente livros de poetas italianos e franceses. Abrindo o livro ao acaso porque desde jovem sabia que o autor escolhe os melhores versos para inaugurar o livro, fiquei surpresa com a qualidade dos poemas. E exclamei em silêncio: “Eis aqui, um poeta!”.
Saí da banheira e quando nos encontramos sei meses depois diante da porta do elevador do mesmo jornal, e ele me convidou para tomar uma café, todos os que nos conhecem sabem o que aconteceu.
O quarto livro que desencavei era a edição francesa do famoso poema do escritor americano Edgar Allan Poe, “O Corvo”. É um poema soturno em que à meia noite um corvo entra pela janela no quarto e na vida do poeta . O estribilho do poema é “Nunca mais”, referência à morte da amada esposa do autor, Leonora.
Vocês devem ter reparado que quase todos os livros que tirei das pilhas que me rodeavam são de poesia. Sendo Affonso poeta é natural que tenha livros de poetas na estante. Mas o último de que vou falar não é de poesia.
Trata-se de “Seis mil anos de pão”, do romancista, dramaturgo, crítico literário alemão H.E. Jacob que, depois de ter vivido em Berlim e Viena, depois de ter passado pelos campos de concentração de Dachau e Buchenwald, exilou-se nos Estados Unidos.
A edição é italiana (“I seimila anni del pane - storia sacra e storia profana”) que herdei do meu pai e que Affonso surrupiou.