Marina Manda Lembranças N ão há outro assunto ocupando nossas cabeças além da guerra. Meu coração se estilhaça como os vidros das casas dos ...
Marina Manda Lembranças
Marina Manda Lembranças
Na crônica anterior escrevi que vivi cinco anos da minha infância na guerra.
Agora acrescento que nos dois últimos anos meu irmão e eu havíamos aprendido a distinguir ronco de bombardeiro de ronco de caça. Botamos até apelido num deles: Pippo. Era um caça espião que fazia voos rasantes sobre a nossa casa, em busca de tropas escondidas no bosque acima do nosso jardim. Às vezes ouvíamos até a barriga dele roçando nas folhas das árvores.
Tinha razão Pippo de procurar tropas escondidas entre os troncos. Verificamos isso uma tarde indo deslizar com nosso trenó e nosso cachorro. Deslizaríamos por uma estrada coberta de neve, não no bosque. Mas vislumbramos tropas aquarteladas. E descemos mais rápido do que desceríamos normalmente. Até prendemos o cachorro para puxar o trenó.
Não a toa estou lendo um livro de guerra. Trata-se do mais que excelente livro de Richard Flanagan, “O Caminho Estreito Para os Confins do Norte”, publicado em 2013 e premiado em 2014 com o Man Booker Prize.
Tecido entre idas e voltas entre o presente e o passado – portanto não linear – narra uma guerra muito mais feroz e sangrenta do que a que vivi na infância.
É a Segunda Guerra, quando um grupo de prisioneiros australianos é obrigado, pelos seus captores japoneses, a trabalhar na construção de uma ferrovia entre a Bangkok e a antiga Birmânia (hoje Myanmar) Idealizada pelo Imperador e decisiva para os japoneses alcançarem a tão almejada vitória. Essa estrada de ferro ficou conhecida como a Ferrovia da Morte e sua construção, ao longo de 415 quilômetros, custou a vida de mais de 100 mil homens .
Pudera! Trabalhavam sem máquinas e sem os instrumentos necessários, quebravam pedras com martelo e formão sem ponta. Além disso, passavam fome e eram acometidos de surtos de cólera, de disenteria.
Em entrevistas Flanagan disse que este foi um livro mais trabalhoso de todos os que havia escrito. Disse ter batalhado doze anos, fez muitas viagens, muitas entrevistas e retirou-se em lugares isolados para poder se concentrar. Fez três versões e rasgou as três por considera-las insuficientes para o seu projeto de narrativa. É, visivelmente, um leitor de poesia, pois começa citando Paul Celan: "Mãe eles escrevem poemas", e intercala três haicais, o primeiro da Bachô e os dois últimos de Issa.
No dia em que, finalmente, Flanagan terminou o romance morreu seu pai. Um sobrevivente da Ferrovia da Morte, de quem o autor extraiu detalhes do campo de concentração e da relação entre os japoneses .
Flanagan dedica o romance ao pai, prisioneiro número 335, com o nome san byaku san ju go, como era identificado pelos japoneses.
O livro narra a história do ponto de vista de Dorrigo Evans, cirurgião e oficial comandante, que além de tentar salvar a vida dos seus companheiros de escravidão precisa salvá-los dos ataques dos japoneses, que poucos se importam de mais uma vida perdida. Eles também são submetidos a extrema pressão, sabem que não tem máquinas e que os prisioneiros que morrem não poderão ser substituídos, que não haverá nova leva de prisioneiros. Mas colocam acima de tudo a vontade do Imperador.
Não é apenas um romance de guerra. Dorrigo divaga lembrando a paixão que teve pela misteriosa e sedutora mulher do seu tio. O livro costura passado e presente, flutua entre memória e realidade.
Li muitos outros livros de guerra, quando estava pesquisando para escrever “Minha guerra alheia”, mas nenhum deles foi tão comovente como O Caminho Estreito Para os Confins do Norte, título que também foi tirado de um poema.