Marina Manda Lembranças M orreu minha amada escritora Lygia Fagundes Telles. Durante anos fomos amigas. Depois a falta de contato, nos encon...
Marina Manda Lembranças
Durante anos fomos amigas. Depois a falta de contato, nos encontrávamos em congressos e feiras literárias e, mais de uma vez, voltamos no mesmo carro, conversando – eu era mais convidada para congressos de Literatura Infanto-juvenil e Lygia, que eu saiba, não escreveu nenhum livro destinado às crianças – e a idade dela – com o passar dos anos tornou-se muito debilitada e deixou de viajar – nos separaram.
Mas guardo muitas boas lembranças.
Ela, Clarice e Hilda Hilst eram as únicas escritoras relevantes. Lygia e Clarice eram muito bonitas, e com medo de não serem levadas a sério, Clarice aconselhou a Lygia: “Quando posar para fotos não sorria. Porque podem pensar que somos levianas”. Desde então Lygia passou a posar séria e, na maioria da fotos empunha óculos, não sei se porque achava que isso lhe dava ares de intelectual, ou porque usava óculos. Como na foto do seu obituário, na primeira página do Segundo Caderno do Globo.
Lembro que em 1996 participamos de um seminário na Universidade de Illinois, organizado pela brasilianista Peggy Sharpe. Era uma seminário fechado, só para especialistas em literatura brasileira. O título do seminário era: “Entre resistir e identificar-se: uma teoria da prática da narrativa brasileira feminina”.
Somente quatro escritoras convidadas, Lia Luft, Helena Parente Cunha, Lygia – ausente, mas que mandou uma carta – e eu. As quatro deviam fazer uma conferência expressando sua opinião em relação ao tema. Quatro especialistas da obra de cada uma das escritoras convidadas fariam uma análise da obra ligada ao tema que havia motivado o seminário.
Só Helena Parente Cunha e eu afirmamos que nossa escrita era feminina, porque víamos o mundo com os olhos de mulher e os livros são o espelho do ponto de vista com que a autora(o) vê o mundo.
Lygia, passados tantos anos, não lembro o que disse, mas certamente não afirmou, como nós duas havíamos feito, que sua escrita era feminina. Era um tempo em que os críticos literários e os editores, todos homens, depreciavam os livros escritos por mulheres. Dizer que sua escrita não era feminina era um modo de sair do curralzinho das mulheres e de se salvaguardar dessa negação.
Lygia em sua carta conferência escreveu que o autor pode se transformar em qualquer pessoa, pode vestir a pele de qualquer personagem, seja homem ou mulher ou até mesmo animal. Diferente do que disse uma vez: “A literatura da mulher é diferente da literatura do homem lá nas raízes, isso porque a mulher é mais intuitiva do que o homem”.
Eu continuo achando que o que confere vida, pulsação, palpitar de coração a um livro é com que olhos o escritor(a) vê o mundo. E os olhos de uma mulher enxergam o mundo de forma diferente dos olhos de um homem.
Lygia também foi muito amiga de Nélida Piñon. Com ela e com outras pessoas importantes foi a Brasília, durante a ditadura, entregar ao ministro da Justiça um manifesto contra a censura assinado por 1046 artistas, cineastas, cientistas e intelectuais.
E foi cabo eleitoral da Nélida, quando a amiga foi eleita para a ABL, em 1989.
Tive meu período de apaixonamento pela escrita da Lygia. Gostava mais dos contos, onde a prosa se faz essencial, contida. Mas gostava também dos romances. Depois fui ler outros autores. Mas nunca esqueci a escrita da minha colega de profissão, Lygia Fagundes Telles, que acabou de partir, aos 98 anos.