Marina Manda Lembranças O primeiro livro que li do escritor francês Jean Giono me foi dado de presente por meu pai, os outros seis comprei ...
Marina Manda Lembranças
Marina Manda Lembranças
Só o mais famoso não li, mas vi o filme. “Le hussard sur le toit” (título no Brasil “O cavaleiro do telhado”) estava passando em Paris, quando viajei e me hospedei sozinha num hotel à espera de Affonso, que chegaria na manhã do dia seguinte. Eu não ia perder o filme extraído do livro do meu escritor (então) favorito. E fui.
O hussardo no telhado, publicado em 1951, trata da epidemia da cólera que fez muitas vítimas na Provença, por volta de 1830. Lembro perfeitamente a cena em que o ator francês Olivier Martinez, interpretando o hussardo, ferve água para Juliette Binoche que contraiu a doença, e cuida dela.
Pensei em Giono, porque li uma reportagem dizendo que o hussardo no telhado é surprendentemente atual em tempos de pós coronavírus. Sobretudo porque Giono anotou no seu díario “é a natureza que arruma suas contas com lápis vermelho”. Fala menos da cólera que de uma natureza em crise por ter sido posta de lado em favor do progresso. Isso nos diz do desmatamento da Amazônia, do envenenamento dos rios pelo garimpo ilegal, e da fauna ameaçada pelo aquecimento global.
Giono nasceu em Manosque, em Provença, e morreu em Manosque aos 75 anos. “Faz 40 anos que eu tenho a bunda refestelada numa cadeira, em Manosque” confiou ele a um amigo, “e sou eu que tenho razão”. Refere-se a ficar num mesmo lugar quase a metade da vida, e de ter a vida universal ao alcance da mão.
Este escritor extraordinário, autor de muitos livros, tinha paixão explícita por outro escritor extraordinário, Dickens. “A cada inverno releio Dickens”. E a respeito de Melville e de sua obra fundamental, “Moby Dick”, escreveu “ Ninguém sabe quanto uma baleia pode ser preciosa quando se está atrás das grades”.
Assim, quando cheguei em Aix en Provence com as duas filhas – Affonso havia nos precedido um mês antes porque precisava dar um curso de literatura brasileira na universidade – para passar três meses e mais três no ano seguinte, sabia tudo sobre a cultura provençal.
O único livro que se aninhou na minha memória foi “Le chant du monde”( em tradução livre: o canto do mundo, ou melhor, o cantar do mundo), não só fez ninho como deixou algumas plumas no ninho.
Lembrava de um trecho em que um homem atravessa uma planície debaixo da tempestade, quando um relâmpago planta uma árvore nas suas costas.
Fui reler o livro para escrever esta crônica e não achei pluma nenhuma no ninho.
Minha memória puxou o tapete debaixo dos meus pés. O trecho que eu pensava lembrar deve estar em algum outro livro de Giono, mas não tenho tempo para reler os seis restantes.
Recordo o primeiro Natal que passamos em Aix. Fomos à feira de “santons” ou seja, figurinhas de argila de diversos tamanhos, com que se faz o presépio. Mandei as filhas pintar alguns, e os outros comprei pintados.
Havia a estatuinha do prefeito, com a faixa tricolor francesa atravessada no peito, a figurinha de braços abertos, retrato da primeira pessoa a ver a estrela que anuncia o nascimento de Jesus.
Comprei um monte de figurinhas porque, como italiana, gosto mais de presépio que de árvore de Natal. E comprei de tamanho pequeno porque queria traze-las para montar o presépio na minha casa de Friburgo. E foi o que fiz.
Hoje dormitam embrulhadas numa caixa, à espera do próximo Natal.