Marina Manda Lembranças S ábado fomos, eu e um casal de amigos, à casa Moreira Salles. Havia visitado a casa muitas vezes antes, mas esta t...
Marina Manda Lembranças
Marina Manda Lembranças
Estávamos dispostos a almoçar no restaurante e depois visitar a exposição de Clarice Lispector.
Previa que para mim fosse muito emocionante essa exposição, porque revisava as crônicas dela no CadernoB do JB, e a conheci antes que ela me conhecesse (foi assim: meu colega Yllen Kerr e eu íamos saindo juntos da redação e ele me perguntou se queria ir à casa de Clarice. Fomos. Mas eu fiquei muda e saí calada do apartamento dela, em pura adoração daquela escritora que havia aprendido a amar na revista Senhor).
E exposição foi super emocionante. Não a parte das fotos, que eu já conhecia, publicadas em livros biográficos ou na imprensa. Mas a parte dos apontamentos.
Eu já sabia que Clarice anotava as ideias que assomavam à sua cabeça em qualquer pedaço de papel, e depois as costurava para seus romances ou contos. Foi por isso que queimou a mão direita gravemente, adormeceu com o cigarro aceso, o colchão pegou fogo, as chamas se alastraram pelo quarto, chegaram à cortina, mas perto da cortina estava a mesa de trabalho de Clarice, e dentro das gavetas estavam seus precisos apontamentos. Então tentou salva-los apagando o fogo com as mãos.
Eu sabia, mas nunca havia estado cara a cara com eles.
Me comovi demais, vendo pensamentos escritos à mão, em volta de um envelope azul desbotado. Havia anotações em agendas, em papeis amassados. Anotei alguns, minha amiga tirou fotos de outros. Eis o que conseguimos.
– (O autor) Angela é um sonho meu
O nome Angela aparece seguidas vezes.
– Estou apaixonada por um personagem que inventei Angela Pralini
– Solidão. Dessas solidões em que se quer inventar Deus e não se consegue
– (autor) Será que Angela sabe que é um personagem?
Ficamos amigos de Clarice quando Affonso, então diretor do Curso de Letras da PUC, a convidou para dar uma conferência para seus alunos. Depois disso passamos a visita-la no seu apartamento no Leme. Riamos muito nessas visitas, os três juntos, enquanto Ulisses rosnava para nós ou se deitava aos pés da dona.
Por isso não nos surpreendemos quando Clarice nos escolheu para entrevista-la, junto a João Salgueiro, para o depoimento dela na Museu da Imagem e do Som, em 1976.
Resumo um pouco do que ela nos disse.
“ Sem perceber que, em mim, fundo e forma é uma coisa só. Já vem a frase feita (...) Então eu resolvi tomar nota de tudo o que me ocorria. E contei ao Lúcio Cardoso (...) que eu estava com um montão de notas assim, separadas, para um romance. Ele disse: ‘Depois faz sentido, uma está ligada à outra’. Aí eu fiz. Estas folhas ‘soltas’ deram Perto do coração selvagem”.
“ Então, com o primeiro dinheiro que eu ganhei, meu mesmo, entrei, muito altiva, numa livraria para comprar um livro. Aí mexi em todos e nenhum me dizia nada. De repente eu disse: ‘Ei, isso aí sou eu’. Eu não sabia que Katherine Mansfield era famosa, descobri sozinha. Era o livro Felicidade”.
“No Diário da Tarde, eu fazia uma página feminina, assinando como Ilka Soares, a atriz. Metade do dinheiro era para ela, metade era para mim. E ela bem que gostava: o nome dela aparecia todos os dias e não tinha trabalho nenhum...Mas era divertido mesmo, a gente consultava muita revista, via o modo de pintar o olho...”
“Eu nasci na Ucrânia, mas já em fuga. Meus pais pararam em uma aldeia que nem aparece no mapa, chamada Tchetchelnik, para eu nascer, e vieram para o Brasil (...)”.
Tchetchelnik, não mais aldeia mas cidade, prestou uma homenagem à pessoa mais ilustre que havia nascido ali, Clarice Lispector.