Marina Manda Lembranças Q uando digo que nasci na capital da Eritreia, vejo nos olhos do interlocutor que ele não sabe onde fica este país s...
Marina Manda Lembranças
Marina Manda Lembranças
É um país pequeno espremido como pasta de dentes, terminando em outro país minúsculo, chamado Djbuti, impedindo o acesso da Etiópia ao Mar Vermelho. Uma tragédia para a Etiópia, porque pelo Mar Vermelho passam muitos petroleiros.
Quando nasci, sei pela narrativa dos meus pais, que descíamos pela estrada – a ferrovia seria construída mais tarde, ainda na colonização italiana – para tomar banho no mar de Massawa.
Quando os italianos colonizaram a Eritreia no ano de 1890, a batizaram com um nome latino do Mar Vermelho – derivado do grego – Mare Erythaeum. E transferiram a capital para Asmara, uma aldeia da Etiópia, que ficava a 2.325 metros, porque de acordo com um inglês de quem tive o bom senso de esquecer o nome, fazia um calor em Massawa capaz de derreter o tutano nos ossos.
Meus pais iam às festas, com frio, envoltos em albornoz. O dele, em cima do smoking, era de lã preta bordado de cordões de seda pretos. Lembro que quando fomos ao Municipal, onde esperava-se a presença de uma princesa, vesti o albornoz do meu pai, erramos a data, e fomos ao cinema Miramar, que ainda existia, eu arrastando meu albornoz por cima do vestido de gala. O da minha mãe era de lã branca bordado em fios de prata, e a envolvi com ele no esquife.
Depois nos mudamos para Trípoli. Eu fui deixada um tempo sozinha com a babá e meu pai. Minha mãe viajou com meu irmão para Roma, disse que não suportava o calor. Em parte acredito, que acostumada com o ar fresco de Asmara, onde cresciam buganvilhas, não suportasse o calor de Trípoli. Em parte não acredito, porque faço mais fé em uma traição do meu pai, costumeiro nisso.
Trípoli era cidade vibrante. Tinha corrida de carros, vários jornais e revistas, editava livros, havia festival de cinema, havia diversos cinemas e teatros.
Lembro da casa, porque já tinha a idade em que se costuram lembranças. Tinham três degraus a superar da cozinha, para chegar ao jardim. Havia um cão que dormia comigo e me lambia o rosto. Havia meu irmão Arduino que tinha voltado com minha mãe – as brigas por traições logo perdiam força, meu pai sabia fazer-se perdoar – que implicava comigo e era meu cúmplice.
E havia um poço, rodeado de cactos que, quando lembro, parecem as orelhas de um Mikey Mouse gigante.
Depois houve o 10 de junho de 1940 em que a Itália declarou guerra à França e à Grã-Bretanha. Hora de voltar para a Itália.
Mas só nós três. Meu pai ficaria em Trípoli esperando a evolução da guerra, e sua transferência.
Lembro de nossa pequena família à beira do cais, eu admirando o hidroavião preto que nos levaria à Itália e que, a mim, parecia um grade inseto – sempre na minha família fomos modernos, podíamos ter ido de navio, assim como quando viemos para o Rio, mas fomos de hidroavião para um lugar e de Costellation para o outro.
Eu estava sentada no bote que nos levaria até o hidroavião, meus pais no cais para a despedida, abraçados.
Depois foi a partida, a chegada a Roma, a ida para o Hotel Boston, que eu chamava de Albergo Boston, “Signora guardia...” começava o que eu tinha que decorar caso me perdesse.
Em um instante foi Como – embora na minha memória, pareçam meses e meses – a volta do meu pai, a meningite que descrevi na crônica da semana passada. A transferência para uma cidade minúscula chamada Albavilla, por questões de segurança, e as bombas caindo.