Marina Manda Lembranças T udo era envernizado nesse mundo ilhéu de maresia e sal. Todo o madeirame da sua casa, de pé-direito alto, vitori...
Marina Manda Lembranças
As portas duplas de caixilho, que se abriam para as sacadas de madeira trabalhada, também eram impregnadas de verniz e de mar. Como grandes molduras com gosto de sal, cada uma exibia a sua quota de tons, de verde-árvore, verde-mar, de azul-serras-ao-longe e azul-céu. Cores que escorriam grossas de sal nos dias de chuva.
O mar impregnava tudo havia muitas gerações. Era um mar manso, de baía, aparentemente inocente, mas sorrateiro. Tão sorrateiro que já pentrara a ilha e seus habitantes sem que estes se dessem conta. (...) O mar era manso mas determinava tudo.
O mar ordenava a sua vida de criança: se passaria nadando ou pescando siri, ou lendo no quarto. Anos depois se iria ao colégio de lancha ou se estudaria em casa por causa da ressaca. (...) As noites de pescaria eram sempre calmas e escuras. Mas, como em sonho as coisas às vezes se invertem, a lua cheia parecia nascer ali mesmo das profundezas do mar, e subia arrastando um redemoinho de peixes até o grande círculo iluminado cujo centro era o arpão.
O mágico fora sem dúvida a tônica desse tempo, tão impreciso quanto as datas, mas as lembranças eram nítidas, palpáveis. O seu mundo de criança solitária era um mundo dos livros ingleses dos contos de fadas. Suas ilustrações se adaptaram ao cenário tropical de mangueiras colossais, sol e coqueiros. (...)
As cozinheiras e arrumadeiras iam e vinham, mas Ramon permanecia. Oficialmente, era o copeiro, mas na realidade era o grande amigo, o confidente, quando a governanta não estava por perto. Tudo era protocolar e empolado no dia-a-dia da menina. O Ramon de uniforme servia a mesa, a longa mesa de doze lugares, da qual a governanta e ela ocupavam apenas uma ponta. Impessoal e sério, passava os pratos como se servisse um banquete.
No seu dia de folga trazia sempre do Rio um pacotinho de balas de coco queimado e ela corria pendurava-se no seu pescoço e beijava-lhe as bochechas. Às vezes o rosto de lua cheia e os olhos apareciam na porta, e, se estivesse sozinha, fazia sinal para que o seguisse em silêncio, na ponta dos pés. Chegando ao jardim ele ficava imóvel com o braço esticado, assobiando como que um código secreto e repetido. De repente, num vôo rápido e certeiro um corrupião amarelo e preto pousava no seu dedo. Ela olhava abismada enquanto ele conversava com o pássaro, pedindo com sua voz grave, misto de espanhol e português, que lhe tirasse dos dentes os fiapos de manga. E o corrupião, sem o menor medo, ia delicadamente com o bico limpar os dentes do homenzarrão!
Sob aquela massa impressionante de papadas e banhas escondia-se uma alma sensível. Ele parecia adivinhar o que estava faltando da vida da menina que vivia mais tempo empoleirada nas árvores do que em terra firme. Ela conhecia as mangueiras a palmo, uma por uma. Passava horas e horas encaixada no vão de um galho, sempre no mesmo, o escolhido, balançando absorta escutando o vento. Sonhava com mastros de escunas e cavalos galopando. A governanta nunca entendeu como da noite para o dia apareceu um balanço pendurado do galho mais alto de uma mangueira. A alegria foi indescritível, e a sensação de poder também. Não era mais balançar, era voar! Bem acima da mangueira, da ilha, do mar, até o ponto em que, totalmente entregue ao vento (...)
As cinco ilhas não eram só um sonho da poeta, faziam parte de uma empresa muito bem organizada. A maior delas, a Ilha do Engenho, certamente tivera em engenho e plantação de cana, mas isso ela não conhecera. A Ilha dos Porcos era toda dedicada à criação de porcos, que forneciam carne e gordura para a cozinha dos navios. A Ilha do Caximbau era minúscula e sem a menor serventia. Um chapéu de coco surrealista recoberto de densa vegetação boiando na Baía de Guanabara. (...)
A Ilha do Viana era um imenso estaleiro equipado com a infraestrutura necessária para não só consertar o que fosse preciso, mas também abastecer os navios, os ITA. (...)
A Ilha de Santa Cruz era o oposto.
O sonho do Tonico Lage que se tornara o mundo da sua bisneta era a Ilha de Santa Cruz. Parecia um enorme navio atracado pela proa a uma ponte de ferro ligada aos estaleiros da Ilha do Viana. A bombordo, um longo cais com escadas de pedra que desciam até o mar, e a estrada que subia ziguezagueando entre capim e mangueiras até o alto do morro. Do outro lado, o mais bonito, se avistavam as casas com seus jardins, e lá embaixo as praias, o costão de pedras, e, ao longe, o fundo da baía e o azul da Serra do Mar. Uma enorme horta, estábulos e currais, e uma granja de galinhas formavam a popa desse navio-ilha.
No seu dia de folga trazia sempre do Rio um pacotinho de balas de coco queimado e ela corria pendurava-se no seu pescoço e beijava-lhe as bochechas. Às vezes o rosto de lua cheia e os olhos apareciam na porta, e, se estivesse sozinha, fazia sinal para que o seguisse em silêncio, na ponta dos pés. Chegando ao jardim ele ficava imóvel com o braço esticado, assobiando como que um código secreto e repetido. De repente, num vôo rápido e certeiro um corrupião amarelo e preto pousava no seu dedo. Ela olhava abismada enquanto ele conversava com o pássaro, pedindo com sua voz grave, misto de espanhol e português, que lhe tirasse dos dentes os fiapos de manga. E o corrupião, sem o menor medo, ia delicadamente com o bico limpar os dentes do homenzarrão!
Sob aquela massa impressionante de papadas e banhas escondia-se uma alma sensível. Ele parecia adivinhar o que estava faltando da vida da menina que vivia mais tempo empoleirada nas árvores do que em terra firme. Ela conhecia as mangueiras a palmo, uma por uma. Passava horas e horas encaixada no vão de um galho, sempre no mesmo, o escolhido, balançando absorta escutando o vento. Sonhava com mastros de escunas e cavalos galopando. A governanta nunca entendeu como da noite para o dia apareceu um balanço pendurado do galho mais alto de uma mangueira. A alegria foi indescritível, e a sensação de poder também. Não era mais balançar, era voar! Bem acima da mangueira, da ilha, do mar, até o ponto em que, totalmente entregue ao vento (...)
As cinco ilhas não eram só um sonho da poeta, faziam parte de uma empresa muito bem organizada. A maior delas, a Ilha do Engenho, certamente tivera em engenho e plantação de cana, mas isso ela não conhecera. A Ilha dos Porcos era toda dedicada à criação de porcos, que forneciam carne e gordura para a cozinha dos navios. A Ilha do Caximbau era minúscula e sem a menor serventia. Um chapéu de coco surrealista recoberto de densa vegetação boiando na Baía de Guanabara. (...)
A Ilha do Viana era um imenso estaleiro equipado com a infraestrutura necessária para não só consertar o que fosse preciso, mas também abastecer os navios, os ITA. (...)
A Ilha de Santa Cruz era o oposto.
O sonho do Tonico Lage que se tornara o mundo da sua bisneta era a Ilha de Santa Cruz. Parecia um enorme navio atracado pela proa a uma ponte de ferro ligada aos estaleiros da Ilha do Viana. A bombordo, um longo cais com escadas de pedra que desciam até o mar, e a estrada que subia ziguezagueando entre capim e mangueiras até o alto do morro. Do outro lado, o mais bonito, se avistavam as casas com seus jardins, e lá embaixo as praias, o costão de pedras, e, ao longe, o fundo da baía e o azul da Serra do Mar. Uma enorme horta, estábulos e currais, e uma granja de galinhas formavam a popa desse navio-ilha.